Quem vive não pode se esconder. Devagar, tudo acontece conosco. O tempo mesquinho se contrai.
Aos quatorze anos de idade, engordei; em compensação, eu esquiava bem. Gostava das calças grossas de flanela que no início raspavam as minhas coxas, às quais mais tarde me acostumei. Era como se a neve ardesse, estalasse, gemesse, igual a uma fogueira de acampamento. Miklóska, anda, vamos apága-la! Ele naõ se mexeu e, com desprezo, disse: " Que arda nela o gendarme!". A frase parecia um ser vivo, de manhã eu ainda a procurava no quarto. A mangueira estava lindamente enrolada; mangueira de incêndio comum, as pequenas alças cravejadas de diamantes e pérolas verdadeiras. Tudo isso devia ser um engano, para desviar a atenção do fogo perigoso! E desviou mesmo.
Naquele tempo, eu ria de tudo, de mim, dos rapazes, das moças, da minha mãe, do meu pai, do nabo, do pilão de cobre, da sopa de galinha, da constelação do cocheiro, do meu irmão Miklós, do trem de carga na curva, da mão que devolvia o troco, de uma perna da calça, ou melhro, de todas as partes da calça, em especial da braguilha e da barra, da gagueira do carteiro, do carimbo torto. Tudo era irresistivelmente engraçado. Ria do mar, da madrugada, da noite, da teai de aranha prateada, dos eseplhos, dos olhares, do cacho de uva, dos sutiãs, do câncer de mama, de um pedaço destruído da cerca, do mar Cáspio, da ossatura delicada de uma mão, das cartas mais sinceras, mais obscenas, encontradas numa gaveta da escrivaninha americana (e a escrita me fazia estremecer), em que meu pai se dirigia a uma dançarina da cidade de Debrecen, e dos vestígios horríveis dos meus parentes e da minha própria circulação sanguínea escura, ria do engenho amoroso e das transformações da morte.
Eu era impiedosa e tinha bom coração.
A superfície, porque o meu rosto cresceu, era feia!, e ficou irregular como um travesseirinho. Muitos não gostavam de mim porque eu deixava a todos nervosos. Mais tarde fiquei mais bonita, e esse foi o período em que fui mais atraente. (Eu não diria isso na época, por exemplo...)
Os verbos auxiliares do coração - Péter Esterházy
Foto de : beautesauvage
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