Foi um acidente. O primeiro ocorrido pelas redondezas da rua A. Ninguém entendeu ao certo como ela morreu, foi tudo tão rápido. De vestido esvoaçante e rabo de cavalo ela sentou no sofá ,um pouco ofegante, e disse que precisava descansar alguns minutos, o ar não chegava aos seus pulmões. Segundo ela havia um congestionamento nas vias aéreas. Era visível pelo tom rosado de suas bochechas e pelas manchas brancas que apareciam no seu sorriso que algo ali não corria como deveria. Era quinta-feira e uma nuvem preta pairava sobre nossas cabeças. Nós já estávamos acostumadas com isso, mas ela, coitada, estava lá há poucas horas e tentava sofregamente se adaptar.
Não sabemos quanto tempo passou desde que ela se aninhou entre as almofadas e ficou ali, deitada de lado, inspirando e expirando. De vez enquando ouvíamos um suspiro baixo, mas nada digno de nota. Parecia que estava tendo um sonho bom, seu rosto era plácido. Acreditamos que foi por volta das oito horas da noite que ela levantou e disse: “Preciso de água. Estou ressecada. Vou descer e dar um mergulho, boiar, ficar um pouco submersa, qualquer coisa que me faça rehidratar. Vai ser rápido, em meia hora estou de volta, e aí pensamos no que fazer”. Nas redondezas do número 1200 ninguém tomava banho de piscina à noite, o síndico permitia simplesmente porque nenhum morador tinha jamais se atrevido a fazer isso. Essa necessidade não fazia parte das nossas vidas, mas V.A tinha uma relação muito forte com a água, que ela justificava de forma holística: “Meu signo é ar, meu ascendente fogo e minha lua em água. Quando me falta ar, meu fogo apaga. É necessário deixar as emoções boiarem”. Nunca soubemos direito o que isso significava, mas ela era dada a dizer coisas estranhas e criar lógicas e mundos próprios. O que sabíamos era que ela era uma eximia nadadora. Aprendeu a nadar com três anos, sozinha, e já tinha ganhado várias competições.
Nem reparamos quando ela saiu de casa de biquíni preto, coque e camiseta vermelha. Estávamos entretidas tentando descobrir um dado importante da vida de uma moça, na internet, e não prestamos muita atenção quando ela balbuciou alguma coisa antes de bater a porta. Acreditamos que era por volta das nove e meia da noite, quando a gritaria entre os zeladores rompeu nossa imersão na pseudogravidez alheia. Mesmo 10 andares abaixo, era possível ouvir: “Alguém liga para ambulância! Ela não está respirando!”. Por um momento achamos que era no prédio ao lado, mas fomos acometidas por um calafrio e lembramos que V.A estava lá embaixo já fazia mais de uma hora, e que ela tinha falado que em meia hora estaria de volta. Nunca um elevador demorou tanto para chegar, e nunca na história dos elevadores, um deles desceu tão rápido. De alguma forma já sabíamos que o que nos esperava naquela área de lazer com brinquedos velhos e quadras abandonadas não era bom. Foi chegar perto da piscina para aquela imagem que nunca vamos esquecer surgir à nossa frente: V.A estava boiando, como tinha dito para nós, só que com o corpo inteiro dentro d’água. Ninguém tinha tido coragem de tirá-la de dentro da piscina, mas era possível perceber que seu corpo não estava inchado e nem murcho. Para preservar sua jovialidade tão característica, pedimos para o vizinho da porta da frente, que era médico, e que tinha descido com seus dois filhos, nos ajudar na remoção. Nós, ao contrário dela, nadávamos muito mal. Ele emergiu nossa amiga de dentro da piscina semi-olímpica e foi possível ver em seu rosto o mesmo ar plácido que ela exibia enquanto dormia. Acho até que era possível ver um sorriso fino naqueles lábios antes rosados e vivos, e agora com um tom cianótico morto.Conhecendo-a bem, não estranharia que seu último pensamento tivesse sido de gratidão A única coisa que nos perguntaram foi se ela sabia nadar. Nossa resposta foi uníssona: “Como ninguém”.
Só quem vive um trauma sabe como as horas e os dias passam rápido. Quando finalmente paramos, nem lembramos com riqueza de detalhes o que de fato aconteceu. Hoje faz uma semana que V.A se afogou, e ainda não conseguimos chegar perto da janela e olhar a piscina lá embaixo. De certa forma ainda não entendemos como isso pode ter acontecido, ela nadava tão bem. Talvez tenha sido a secura daqueles dias, ou a nuvem preta que pairava sobre nossas cabeças que a tenha sufocado. A única certeza que temos, ao longo desse tempo, é que ela não se matou. Quando olhamos para ela naquela quinta, já sem vida, lembramos o que ela disse antes de bater a porta: “Eu estou feliz”.
Um pouco da minha coleção de Ophelias modernas:
Um pouco da minha coleção de Ophelias modernas:
Fotos de: beautesauvage.tumblr
4 comentários:
Denso, forte. E muito bonito. Adorei, Bel.
Muito bonito mesmo. Sempre que penso em Ofélias modernas, lembro de Virginia Woolf boiando. Ou de Edna Pontellier em "O despertar". Ou de Didine, filha de Victor Hugo, ou ainda Françoise Dorleac. A asfixia que V.A sente fora d'água é a mesma que ela sente dentro d'´água, o que é metaforicamente forte.
sufocantemente bonito.
lindo, lindo...
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