Tiraram aproximadamente quatro vidrinhos de sangue do tipo B positivo dela, uma verdadeira violação arterial, para procurar a razão, o porquê de uma hora para outra tudo ter ficado turvo e sem sal. Era óbvio que a medicina ia ter uma justificativa boa suficiente para pés e unhas com aspecto de mil-folhas. Além disso, a menina tinha cabelos quebradiços, pele sem viço e corpo roliço. Alguns afirmaram que era estresse pós traumático, ciúmes, outros culparam as dificuldades da vida, um amor não vivido, a economia que está em crise, os hormônios estagnados, a solidão, a saudade que não finda, o fato de ela colocar o cachorro em cima da cama e, até mesmo, a falta de investimento em uma previdência privada.
Ela afirmava não saber o que aconteceu, jurava que não tinha motivo, disse que tinha acordado assim. De um dia para o outro ela tirou todos os brincos de brilhantes, quatro em cada lóbulo, e começou a desfilar a orelha pelada por aí, sem pudor algum, com uma ousadia triste. Depois foi a maquiagem que não mais trouxe cor às maçãs altas, e muito menos amenizou os túneis de olheiras que escondem duas butucas cor de azeitona lá no fundo. Sem contar o esmalte velho, cor de pele (ou nude) que jazia naquelas unhas fracas, e os fios brancos descobertos sem a rinsagem Chocolate glacê. De tudo que abriu mão, o que mais incomodava os outros era a ausência dos brincos. Vivia assim, em uma dieta de palavras, sem som, sem risos, sem vida.
Optaram por ajuda especializada, mandaram colocar a língua para fora, abrir as pernas, respirar pelo nariz e expirar pela boca, esticar o pescoço, furaram o dedinho e perguntaram a data da última menstruação. Assim como os quatro frasquinhos de sangue retirados, nada mostrava a razão para um belo dia ela ver tudo turvo e sem sal. Pelo contrário, os exames afirmavam que era um organismo saudável, sem doenças venéreas, onde colesterol bom e mau davam as mãos e a glicose era como a de um bebê que nunca viu um brigadeiro na vida.
Porém, é o papel da ciência explicar o que acontecia com ela, o que tinha mudado, era necessário achar uma pista para trazer à tona o que se passava dentro daquela corpulência. Sentaram-na em poltronas, deitaram-na em divãs, pediram que ela contasse o que sentiu quando foi esquecida na escola aos sete anos, e qual era a relação dela com os serviços do Google. Ofereceram um pacote de limpeza do passado, auxílio no presente e paz no futuro. Ela aceitou. Todavia, ela continuava com as orelhas sem brincos. Decidiram por algo mais radical e novo, respondeu testes, colaram eletrodos e deram papéis onde o que estava prescrito vinha repetido em vias azuis, brancas e verdes. A posologia era clara: 1 no almoço e 1 no jantar para você voltar a sonhar. Tiraram o glúten, tiraram tudo que era carne, tiraram os vícios (principalmente os que escondia e os que mais gostava), tiraram o doce. Deixaram o consumo moderado de bebida destilada, inseriram consomés de rãs, feijão azuki, e uma lima de pérsia antes de dormir. Além da corrida, o pilates : "Alongar vai te fazer bem" - o professor falou para ela. "Te fazer bem", ela repetia para si mesma. Sugeriram que fosse ao cinema uma vez por semana, que lesse no mínimo um livro por mês, que assistisse um filme antigo toda quarta, e que visse uma exposição sempre que inaugurava uma, "coisas que você gosta". Mandaram que ela se matriculasse em um curso de fotografia e proibiram o uso excessivo de internet e meios de comunicação virtual. Banho era obrigatório todos os dias, e só poderia sair de casa de óculos 3 vezes por semana, o resto era lente de contato "para ficar com uma carinha melhor", disse uma amiga. Deram uma passagem para o destino mais barato: "vai ser bom para espairecer", um ingresso para um festival, um sapato azul e um caderno com estampa de polvo. Ela ficou bem agradecida.
Tem 11 dias que tudo que tinha que ser tirado foi tirado, e tudo que tinha que ser colocado, foi colocado. Tudo continua meio turvo e meio sem sal, mas afirmaram que logo as formas e cores se definem e os temperos voltam a surgir. As únicas vontades que brotaram foram: reaver o brilhantinho que carregava na narina direita para transformá-lo em uma argola, e ir para Colombia. Nota-se, no entanto, que até o presente momento nenhum maldito brinco foi posto naquelas orelhas sem graça.
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