sexta-feira, 31 de julho de 2009

Meu passado me condena


Nasci em um trailler de cor cinza e letras vermelhas, onde se lia: "Cabinet Éxotique". Fruto do amor entre o incrível Homem Gógó e da Mulher que Devora Livros, vim ao mundo em um quinta-feira chuvosa no meio de um circo em Coney Island. Quando meus pais me pegaram no colo, me deram o nome de Agnes, por causa da mártir de incrível pureza. Cresci naquele ambiente que para muitos era inóspito e pertubador, mas que para mim era só uma trupe onde meus pais trabalhavam, e que eu podia ousar chamar de família. Ao 15 anos eu ganhei meu primeiro collant de lantejoulas. O brilho carnavalesco daqueles pedaços de plástico ora côncavos, ora convexos, sempre me emocionou. O que eu acabara de ganhar era cravejado desses rubis sintéticos. De collant vermelho fui iniciada na arte do trapézio. No início eu não era boa, o medo aflorava ainda na escada maleável, e eu não tinha bossa nenhuma voando pelos ares. A imagem que surgia diante do público em nada parecia com uma performance. Se assemelhava sim, com um resgate de uma vítima de incêndio. Com o tempo mudei de cor e passei para o collant preto, ainda de lantejoulas. Coloquei uma testeira da mesma cor, onde era possível ver, saindo por detrás do meu cabelo, uma pena de pavão real. No rosto, somente os olhos carregados de kajal. Neste dia quando entrei no picadeiro fui rebatizada com o nome de : Le Paon Sombre.
Criei um número que praticava com muita disciplina, porém não podia ser chamado de belo. Naquela época eu estava apaixonada, meu corpo saltava, mas minha mente estava atrelada a um porto seguro que era ele. Como mera mortal que sou, ficou sendo dele o papel principal do drama mais conhecido da humanidade - o amor não correspondido. E foi a partir desta frustração que tudo mudou. A sensação amarga era tal, que depois de ter percebido que o amor foi em vão, o medo de se entregar ao trapézio se foi, o nó foi desatado do porto. Finalmente corpo e mente se encontravam pela primeira vez em um espetáculo sombrio como meu nome mesmo já dizia.
Sem esperanças de encontrar um outro merecedor de tamanha fúria passional, criei piruetas e saltos que juntos foram chamados de La Petite Mort. Os orgasmos não eram meus, e sim da platéia. Meu papel ali era saltar como se cada travessão daqueles fosse o homem que um dia iria me segurar. De olhos fechados e um sorriso débil, o espetáculo assumia seu ápice quando a platéia em êxtase observava minhas mãos, um tanto magras é verdade, segurarem aquela barra que parecia tão distante. Era uma matemática simples: ou bem seguia meus instintos e numa luta pela sobrevivência me guiava no escuro procurando minha salvação, ou caía e provavelmente não sobreviveria.
Até hoje repito esta apresentação que me trouxe muitas recompensas. O amor pelo engolidor de facas adormeceu, e eu continuo minha busca por braços humanos. Como ainda não os encontrei, permaneço me atirando nos travessões. O que ninguém nunca percebeu é que, todas vezes que desço aquelas escadas, que antes me amendrontavam, a maquiagem borrada não é de suor, é a mistura igualmente salgada de lágrima com medo. Todas às vezes que executo com esplendor La Petite Mort, em todas elas eu choro.

* Foto de: Andrew Michael Casey - http://andrewmichaelcasey.com/

Um comentário:

Leonardo Villa-Forte disse...

Gostei muito da história, fiquei com peninha da trapezista. Adorei o modo como você apresentou a situação que a rodeia desde o nascimento, a família de circo. E além de tudo, ainda aprendi que kajal é o delineador indiano. Seu blog também é cultura!