Newton teve uma epifania gravitacional ao receber do alto uma maçã na cabeça. O alvo da natureza não estava pensando em física e, provavelmente, não queria e nem esperava ganhar o fruto proibido no cocuruto. Acontece que provocações celestiais surgem sem que a gente queira, e quando elas ocorrem, geralmente, é como uma fruta que nos acerta.
Pois bem, eu sou Newton no seu espanto todas as vezes que você surge na minha vida, seja na forma que for (são muitas, em lugares e formas que nem eu mesma acredito). Diferente da história amplamente conhecida, sua aparição não é como uma singela maçã. Você despenca na minha cabeça feito uma jaca, não deixando espaço para nenhum tipo de teoria pós choque - o susto é grande. Eu, cagada, cheia de visco e bagos, fico ali, parada a olhar você esborrachado no chão. Me sinto um pouco humilhada, um pouco exposta, e um tanto ridícula de saber o quão recheado de simbolismo é este ataque aéreo, que muitas vezes nem é intencional: você simplesmente despenca e pronto. Fito seu interior, vejo sua casca grossa, seu odor característico, não tenho dúvida que, sim, é você. "Por que?" - indago olhando para cima, sabendo que quem poderia responder está justamente embaixo . Você, jogado na superfície de asfalto, não tem como me responder. Tomada de paixão, pego um bago mole (assim eu classifiquei você, jaca mole - Artocarpus Integrifólia) e coloco na boca. Relembro seu gosto, que nem é tão maravilhoso assim, mastigo com cautela, tentando achar algum sabor aprazível, e cuspo seu caroço em uma poça, me certificando que não brotarão outros vocês por aí. Enfio minha mão bem no seu âmago, e pego tudo que consigo de dentro de você. Coloco tudo na boca em busca de uma sensação esquecida - deve ser saudades - mas não cabe. Me babo, sujo meu rosto com fiapos, toda aquela gosma e cica sua em mim - é impressionante como você nunca está maduro!
A cena é toda grotesca. Eu, ali, no meio da rua, de quatro, chafurdada em você. Você, expelindo de seu caule aquela espécie de néctar branco, viscoso, que mais parece cola, e que tanto me repugna. Eu, colocando para dentro tudo que pertence a você, toda a sua intimidade. Você, estático, permitindo a violação. Levanto, me aprumo, e, transtornada com tudo que está acontecendo, decido pisar em você. Sim, enfio o pé na jaca, e saio andando sem olhar, criando pegadas sebentas pela calçada. Sei que mais à frente vou acabar dando uma rápida olhada para trás, uma espécie de fraqueza com verve masoquista. Sei também que, quando chegar em casa e me recuperar da sua aparição, vou refazer toda a cena, desde o início, na minha cabeça, e achar que foi bom. De alguma forma sei que nossos encontros, daqui para a frente, vão ser sempre (sempre?) assim, tomados de surpresa, sem esperar, ditados por leis que desconheço. Da minha parte, faço o exercício da banalização dos fatos. Já estou tendo certo autocontrole, a ponto de haver dias em que consigo evitar sua presença inesperada, antecipando situações nas quais você de alguma forma possa irromper. Mas há outros em que pago para ver. Nossa relação se desenvolveu dessa maneira antropofágica e sádica. Você me agride, eu amo, você se abre para eu provar, cuspo, você me provoca e eu piso. Você me ama de maneira torta, e eu amo você de maneira errada.
Newton fez uma fórmula que revolucionou o mundo através da maçã, nós, ao contrário, não fazemos nada pela gente, tampouco pelos outros, quiçá pela posteridade. Toda a vez que isso acontece, eu me alimento de você, na ânsia de preencher um lugar vazio que você mesmo deixou. Porém, de alguma forma mórbida, que me foge à compreensão, sempre que há essa aparição sua, fora de lugar, você morre um pouco dentro de mim.
Me esquivo, mas não resisto.
(foto de algum tumblr que não me lembro)
(foto de algum tumblr que não me lembro)
* Ontem, às 20:54, você apareceu para mim, no meio da aula, na frente de todo mundo. Que vergonha.
** Texto escrito em março deste ano, daqueles feitos a caneta no caderno da pós, recuperado somente agora na volta ao lar. Inspirado livremente em Paixão Segundo G.H (Clarice Lispector)
2 comentários:
assim vc acaba comigo.
Na minha opinião, um dos melhores posts até hoje. :)
Lembrei do Visconde de Sabugosa, por causa da jaca. Mas concordo com a Catarina, o texto é forte e reflete suas leituras recentes, os livros do mal.
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