Para os dias de sol que não apreciamos juntos.
" (...)
O choro a acorda. Ela te olha. Olha o quarto. E de novo ela te olha. Acaricia a tua mão. Ela pergunta: Você chora por quê? Você diz que cabe a ela dizer por que você chora, que ela é que deveria saber.
Ela responde baixinho, com doçura: Porque você não ama. Você responde que é isso.
Ela pede a você que lhe diga claramente. Você lhe diz: Eu não amo.
Ela diz: Nunca?
Você diz: Nunca.
Ela diz: O desejo de estar prestes a matar um amante, de guardá-lo para si, só para si, de arrebatá-lo, de roubá-lo a contrapelo de todas as leis, de todos os impérios da moral, você não sabe o que é isso, você nunca soube?
Você diz: Nunca.
Ela te olha, ela repete: É curioso um morto.
(...)
Um dia ela não está mais ali. Você acorda e ela não está mais ali. Ela se foi na noite. O rastro do corpo ainda está nos lençóis, o rastro é frio.
Agora é alvorada. Não ainda o sol, mas as fímbrias do céu já estão claras, ao passo que do centro desse céu a obscuridade ainda desce à terra, densa.
Não há mais nada no quarto além de você sozinho. O corpo dela desapareceu. A diferença entre ela e você se confirma pela sua ausência súbita.
Ao longe, pelas praias, as gaivotas gritariam no negrume que se desfaz, elas já começariam a se alimentar dos bichos da vasa, a escarafunchar as areias desertadas pela maré baixa. No negrume, o grito louco das gaivotas famintas, de repente lhe parece que você nunca chegou a ouvi-lo.
Ela não voltará nunca.
Na noite em que ela se foi, num bar, você conta a história. Primeiro você conta como se fosse possível fazer isso, e depois você desiste.
Em seguida você conta rindo como se fosse impossível que ela tenha ocorrido ou como se fosse impossível que você a tivesse inventado.
No dia seguinte, de repente, você talvez notasse a ausência dela no quarto. No dia seguinte, talvez você experimentasse um desejo de revê-la ali, na estranheza da tua solidão, no seu estado de desconhecida tua.
Talvez você a procurasse fora do teu quarto, pelas praias, pelas varadas, pelas ruas. Mas você não poderia achá-la, porque à luz do dia você não reconhece ninguém. Você não a reconheceria. Dela você não conhece mais do que o corpo adormecido sob os olhos entreabertos ou fechados. A penetração dos corpos, você não poderia reconhecê-la, você não pode jamais reconhecer. Você não poderá jamais.
Quando você chorou, era só por você e não pela admirável impossibilidade de chegar até ela através da diferença que os separa.
De toda a história você só retém certas palavras que ela disse durante o sono, essas palvras que dizem aquilo que você tem: Doença da morte.
Bem depressa você desiste, você já não a procura, nem na cidade, nem na noite, nem no dia.
Assim, no entanto, você pôde viver esse amor do único jeito que era lhe possível, perdendo-o antes que ele acontecesse."
Marguerite Duras - A doença da morte.
2 comentários:
lindo esse texto! conheço muitos que sofrem dessa doença, e para todos os outros a sua volta isso é doído.
Esse livre me fez tremer...
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