sábado, 12 de janeiro de 2013

O poder de uma DR

(...) "peraí que você vai ver ainda" foi o que pensei dando conta de que a merda que me enchia a boca já escorria pelos cantos, mas eu não perdia nada dessa íntima substância, ia aparando com a língua o que caía antes da hora, sem falar que a fumaceira do momento era extremamente propícia ao ocultismo, não ia desperdiçar aquela chance de me exercitar nas finas artes de feiticeiro, por isso a coisa foi assim: surgiram, em combustão, gotas de gordura nos metais das minhas faces, meu rosto começou a transmudar-se, primeiro a casaca dos meus olhos, logo depois a massa obscena da boca, num instante eu era o canalha da cama, e eu li na chama dos seus olhos "sim, você canalha é que eu amo", e sempre atento aos sinais da sua carne eu passei então a usar a língua, muda e coleante, capaz sozinha das posturas mais inconcebíveis, e não demorou ela mexeu os lábios dum jeito mole e disse um "sacana" bem dúbio, era preciso conhecer de perto sua boca pra saber o que ela tinha dito, e era preciso conhecer essa femeazinha de várias telhas pra saber que sugestão, eu fiz de conta que ela tinha esquecido tudo e que o mundo agora só tinha aquele apertado metro de diâmetro, continuei o canalha da cama e ela dum jeito mais quente tornou a dizer "sacana", que era o mesmo que dizer "me convida pra deitar na grama", ela que nos arroubos de bucolismo me pedia sempre pra trepar no mato, daí que forjei uma víbora no músculo viscoso da língua, e conformei-lhe cabeça, e uma sórdida altivez. "an "an "an" eu disse mexendo a ponta devassa, "sacana sacana" ela disse numa entrega hipnótica, já entrando quem sabe em estado de graça, mantendo contudo as narinas plenas, uma respiração ruidosa tumultuando o colo, os peitos empinados subindo e descendo, as penas todo do corpo mobilizadas, tanto fazia dizer no caso que a ave já tinha o vôo pronto, ou que a ave tinha antes a asas arriadas, e foi pra melar inda mais o desejo dela que levei a mão bem perto do seu rosto, e comecei com meu dedo do meio a roçar o seu lábio de baixo, e foi primeiro uma tremura, e foi depois uma queimadura intensa, sua boca foi se abrindo aos poucos pr'um desempenho perfeito, e começamos a nos dizer coisas através dos olhos (essa linguagem que eu também ensinei a ela)" (...)

Um copo de cólera - Raduan Nassar

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