Logo depois da guerra, Theodor Adorno, abalado, disse: "Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro". Um dos meus professores, Aliés Adamóvitch, um nome que quero citar hoje com gratidão, também considerava que compor prosa sobre os pesadelos do século XX era sacrilégio. Aqui, não se tem o direito de inventar. deve-se mostrar a verdade como ela é. Exige-se uma "supraliteratura", uma literatura que esteja além da literatura. É a testemunha que deve falar. Pode-se pensar em Nietzsche, que dizia que não há artista que possa suportar a realidade. Nem a superar.
Sempre me atormentou o fato de que a verdade não se sustenta num só coração, num só espírito. Que ela é de algum modo fragmentada, múltipla, diversa e dispersa pelo mundo. Há em Dostoiévski a ideia de que a humanidade sabe muito mais sobre si mesma do que aquilo que consegue fixar a literatura. O que eu faço? Recolho sentimentos, pensamentos, palavras cotidianas. Reúno a vida do meu tempo. O que me interessa é a história da alma. A vida cotidiana da alma. Aquilo que a grande história geralmente deixa de lado, que trata com desdém. Eu me ocupo com a história omitida. Ouvi mais de uma vez e ainda ouço que isso não é literatura, que é documento. Mas o que é literatura hoje? Quem pode responder? Vivemos mais rápido que antes. O conteúdo rompe a forma. Ela a quebra e modifica. Tudo extravasa das margens: a música, a pintura e, no documento, a palavra escapa aos limites do documento. Não há fronteiras entre o fato e a ficção, um transborda sobre o outro. Mesmo a testemunha não é imparcial. Ao narrar, o homem cria, luta com o tempo assim como o escultor com o mármore. Ele é um ator e um criador.
O que me interessa é o pequeno homem. O pequeno grande homem, eu diria, porque o sofrimento o torna maior. Nos meus livros ele próprio conta a sua pequena história e, no momento em que faz isso, conta a grande história. O que aconteceu e acontece conosco é ainda incompreensível, é preciso ser pronunciado. Para começar, é preciso ao menos pôr tudo em palavras. E tememos por isso, pois ainda não nos sentimos em condições de dar conta do nosso passado. Em Os demônios, de Dostoiévski, em preâmbulo a uma conversa, o personagem Chátov diz a Stavróguin: "Nós somos dois seres que se encontram fora dos limites do tempo e do espaço... pela última vez no mundo. Deixe o seu tom de lado e pegue outro que seja humano! Fale, uma vez na vida, com voz humana".
Vozes de Tchernóbil- Svetlana Aleksiévitch
Companhia das letras - pág 372 e 373.
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