Um ônibus. Tudo começou em um ônibus. Um ônibus com hora certa, parada certa e passageiros certos. Esse é era o maior elo deles, um ônibus com um número ridículo.
Eles eram os diferentes, moravam onde ninguém morava. Foram obrigados a conviver por uma questão geográfica. E daí surgiu uma amizade. Não era bem uma amizade, e sim um passa tempo para a viagem, posto que não havia interesses em comum. A lei dominante era discordar, discordavam da entrada até um deles descer. A amizade veio depois. E depois o amor platônico, e depois o equívoco, e depois a separação, e a reaproximação, e a separação e a reaproximação, um fluxo contínuo... como em uma viagem dentro de um ônibus circular.
Ela sempre falou demais, para tudo tinha opinião, as mais absurdas, um gosto um pouco exótico, e um defeito: sempre esperou demais dos outros. Uma carência infundada, mas que sempre fez com que ela tivesse que ter certezas, mesmo não tendo nenhuma, além de uma necessidade de controlar os outros. Falava muito de si como se houvesse um pacto, “agora que te deixei entrar na minha vida, por favor fique”, só que isso valia até para o cobrador. Chato isso. Maiakovski disse: “A anatomia errou comigo, sou todo coração” seria uma definição para o caso dela. Ele no entanto, sempre foi o oposto, ou pelo menos sempre tentou parecer. Aliás esse era um dos seus jogos favoritos, pareço mas não sou. Difícil era achar a essência dentro de tantas aparências. Sempre independente, falava bastante, nunca dele, sentimentos, pouquíssimos. Sempre soube ouvir, mas sempre selecionou o que ouvia, e um ouvido seletivo é algo que temos que aprender a lidar, ou melhor, “peneirar” o que vai ser dito, para não gastar saliva à toa. Neste ponto eram realmente opostos. Um agia antes de pensar, o outro pensava, pensava, pensava, pensava e aí quem sabe agia. O tempo dele - que ela tanto detestava.
O tempo do relógio não é o tempo pessoal. O tempo faz esquecer, o tempo cura a ferida, o tempo traz mudanças, o tempo nos faz envelhecer, o tempo nos faz amadurecer, o tempo é uma faca de dois gumes, e sintonizar o próprio tempo com o real e o do outro é uma tarefa árdua. Ela nunca cobrou tal sintonia, mas sempre detestou esperar. A espera é uma forma de colocar o outro no seu devido lugar. A espera nos prende e nos torna vulneráveis. A relação do atrasado e do que espera é quase uma relação fetichista: sou teu escravo, eu te espero enquanto o outro tem algo melhor para fazer e sabe, por que ele sempre sabe, que o outro está esperando. De alguma forma isso deve trazer uma satisfação pessoal. Para ele, sem dúvida.
Como foi dito, depois da amizade veio a paixão platônica. Todos sabiam, ela terminou o namoro, todos comentavam, mas não era o momento, ela esperava e ele decidia, e a amizade continuava. Viagens, pastas, folhas, fotos, e-mails, despedidas... o tempo passou, e ela arranjou um namorado, não agüentou esperar. Um amigo que surgiu para substituir, reafirmando que ela sempre foi carente, acabou encantando e daí surgiu um romance, que a princípio tinha tudo para dar certo. Esta foi a primeira vez que ela não esperou ele. Só que o namoro não deu certo, pelo contrário, terminou de forma bem ruinzinha. De um grupo de amigos só restou ele no caminho dela, e por ironia da vida, por mais que ele estivesse dentro do mesmo contexto, ela nunca o associou ao resto dos amigos. Sem dúvida ele era especial, a intimidade era grande, se conheciam bem para virar as costas e cada um ir para seu canto.
A segunda vez que ela não esperou, foi quando ele decidiu ter alguma coisa com ela. Só coube a ela dizer: desculpa amigo este não é o meu tempo, as coisas não são na hora e do jeito que você quer. Mostrando como a problemática do tempo está sempre presente. Ninguém aceita bem o tempo do outro, muito menos quando se apostam algumas fichas para dar certo e não dá. O afastamento foi inevitável, porém contornado, abafaram o caso e continuaram amigos. Só que como eram de turmas diferentes e já era quase fim do ano, ele foi embora antes dela. Foi a segunda vez que ela observou ele ir embora.
Mas o mundo da voltas e a Zona Sul é um ovo. Um ano depois., ela estava na mesma faculdade. Não era como antes, mas se encontravam de vez em quando, alguns amigos em comum, pilotis, MSN, festinhas e aniversários. A lacuna era grande, mas onde há algum tipo de amor sempre resta um sentimento de cumplicidade, e isso sem dúvida não foi perdido. Um dia estavam conversando e no mesmo dia descobriu que ele ia viajar novamente.Com a notícia veio à festa de despedida, como de praxe. Ela pensou: ”já mal nos vemos, que diferença faz ? vamos à despedida”... Na hora de se despedir ficou triste, uma tristeza que ela não esperava sentir, de repente se viu numa passividade assustadora, em uma confusão interna como se estivesse de fato presa a um passado e as palavras “ eu te amo. eu sempre te amei e eu sei que você sabe disso” bateram de uma forma muito estranha, podia ser verdade, existem tantas formas de amar, mas o papo de bêbado não estava descartado. A única resposta foi: "Boa viagem.Aproveite." Naquele momento não era o que ela esperava dizer e nem ele ouvir, provavelmente. Chegou em casa chorou um pouco e mais uma vez abafou o caso, como das outras vezes, sempre na passiva e ele na ativa.
No entanto estas palavras que geraram um incômodo deram forças para ela investir via Internet numa relação de amizade saudável. Falava com ele, enchia o saco, vivia numa falsa “atividade”, mal ou bem o tempo dele ainda controlava a relação, respondia quando bem entendia, saia do MSN do nada, tudo que irritava ela, que respirava fundo e começava tudo de novo no dia seguinte. Até que essa situação chegava ao limite, ela ficava irritada, se sentia humilhada, correndo atrás, voltando à sua posição fixa de esperar. Isso gerava um monte de pensamentos do tipo: Será que? Por que? Não, não é pessoal, mas a raiva era grande, deletava os e-mails dele, dizia chega! Só que no primeiro sinal de “Olá" ela voltava a considerar a amizade. Se tem uma coisa que ela aprendeu a muito custo foi não depender mais 100% das pessoas, e quando ele chegou para as férias, ela percebeu que na vida dele, o lugar dela era mais no passado do que no presente, como se fosse um brinquedo que o adolescente não tem coragem de descartar. Mesmo assim , ela tentou, mandou alguns e-mails, não queria encontrar ele nem nada, era só para mandar um “oi” “e aí?” “o que tem feito?”, só que o tempo dele não permitia. Muito atarefado, deixou ela um pouco de lado, com a certeza que ela, que sempre aceitou, e que o conhecia tão bem ia entender a mente relapsa, a maluquice e a dislexia, fatores que existiam, mas que não eram impossibilitadores quando ele queria algo de fato. Se não respondia é por que não estava com vontade. As coisas tinham mudado, no entanto, e ela não queria mais. Caso exista um término de amizade, foi isso que ela ofereceu , para não ficar chateada. É preferível ter uma boa lembrança do que passou, do que se sentir mal no presente. A dependência dela não permite uma amizade onde só um dita as regras. O tempo dele consumiu a relação. Essa foi a terceira vez que ela não esperou e a primeira vez em que se despediu com palavras semelhantes: Eu te amo.Um amor que se modifica há oito anos, uma certeza que vamos levar para sempre e para qualquer lugar, mesmo que nunca antes tenha sido dita, mas não posso deixar de ser eu. Minha natureza é falastrona, excessiva, um tanto grudenta, eu levo a sério demais quem eu considero amigo, e para ficar policiando meus atos, prefiro abrir mão. Não posso ficar esperando o seu tempo e não quero mais ficar observando, como fiquei esse tempo todo. Não vou colocar você na caixinha do passado por que seria injustiça demais. Mas prefiro deixar ao acaso.Fica mais leve assim não é?
Au revoir.
2 comentários:
Está em Jules et Jim, de Truffaut.
"Je te dis: je t'aime, tu me dis: attends, tu me dis: prends moi, je te dis: va t'en!"
Mais uma coisa: como você escreve bem, mesmo na confissão mais rasgada, na dor mais profunda, na confusão mais deslavada. Tu écris si bien, Jeanne Duval!
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